São crimes escondidos, à sombra de uma legislação inadequada. Os crimes são muitas vezes traduzidos em coimas, evitando assim no cadastro um crime horrendo.

As leis são antiquadas e é uma batalha ainda por ganhar. O Tugaleaks entrevistou a Associação ANIMAL e o PAN, ambos defensores, nas suas vertentes, dos animais.
A opinião é generalizada, é preciso fazer mais do que está feito e tentar que haja uma maior harmonia entre a lei, permitindo colocar os animais humanos e não humanos ao mesmo nível.

O caso Zico, que tornou possível a perca de vista de uma criança, tem sido uma das lutas da Associação ANIMAL. Falámos com Rita Silva, presidente da ANIMAL, que explica terem feito ”vários pedidos informais e formais (estes segundos ao Tribunal) para ver o animal“ mas sem sucesso. Embora admitam que “a nossa advogada não tem encontrado nenhuma irregularidade nesse sentido” admitem também que o processo tem levado mais tempo do previsto. Afinal, para a ANIMAL, cuja falta de verbas é o maior problema, tenciona dar um novo rumo à vida do Zico. Afirmaram que pediram “ao Tribunal para ficar fiel depositária do animal. Se esse pedido for aceite, a ANIMAL fará de tudo para que este animal viva o resto da sua vida recuperado e em paz, longe dos olhos de quem lhe quer mal“.

 

Abandono e mau trato de animais não é punido criminalmente ou de forma adequada

 

Numa opinião mais tácita, contactámos também o PAN, um partido que defende os animais e ficou nas últimas eleições para AR em Junho de 2011 em 7º lugar.
Em entrevista com Inês Real, ficamos a saber um pouco mais sobre o estatuto do animal em Portugal:

 

Em Portugal, legalmente, ainda se coloca o animal num patamar inferior
ao homem?

Sim, o valor jurídico da vida humana e da vida animal não são tidos no mesmo patamar.
O Direito, em geral, mas com particular relevância para o caso concreto, o português, no que respeita à protecção animal é ainda fruto de uma moral antropocêntrica e utilitarista, que protege os animais, em função até do valor afectivo que lhes é atribuído pelo ser humano, ao invés de os valorizar como individuo de uma (in caso a sua) espécie, com direito a existir pelos seus próprios fins e fundamentalmente com direito a uma existência condigna e livre do sofrimento.
O Direito espelha ainda alguma da indiferença social e ética que persiste relativamente ao valor da vida animal.
Nunca como hoje se falou tanto em direitos dos animais e de direito animal. E assistimos a uma evolução civilizacional, que decorre de uma nova consciência social, filosófica, ética e cientifica que reconhece a evidência de que os animais não são seres inanimados, são seres de uma vida, são pares entre nós.
Contudo, verificamos que o legislador nacional não acompanhou ainda esta evolução, e que é imperativo que se faça o reconhecimento do estatuto próprio dos animais.
Apesar de existirem já diversos diplomas que visam a protecção e promoção de bem-estar animal, nenhum destes diplomas veio afastar a aplicação das normas do Código Civil no que aos animais respeita.
Com a evolução que se tem dado nos domínios da ética, da filosofia, da ciência, e até do próprio direito, verificamos que actualmente já não é consensual que as normas do código civil se devem continuar a aplicar aos animais. Quando se fala ou se pensa em animais não humanos, estamos a falar de seres vivos, seres que a ciência reconhece como “sencientes”, ou seja, capazes de sentir dor, alegria, ansiedade, stress (e veja-se a esse propósito a Declaração de Cambridge), de ter uma vida emocional muito complexa, o que os distingue das coisas inanimadas.
No entanto, quando falamos em direitos humanos e direitos dos animais verificamos que tal é erradamente associado a uma colisão de direitos ou de interesses. Como se inevitavelmente falar-se em direitos dos animais conduzisse a uma perda de direito humanos. Quando ao invés, falar-se de direitos dos animais implica uma elevação da dignidade do próprio ser humano, que deve desprover-se da sua perspectiva antropocêntrica e utilitarista, alargando a esfera moral de interesses ou direitos que devem ser protegidos.
Os animais não humanos partilham com o animais humanos o mesmo interesse em sobreviver, o mesmo interesse numa vida livre de sofrimento. Contudo, a lei valora de forma completamente diferente o direito à vida consoante estejamos a falar de um ser humano, de um animal com “dono” ou ainda de um animal errante.
Não podemos deixar de ter presente que o homem domesticou os animais, tornando-se seus dependentes, e condicionando até toda a sua existência, pelo que tem por isso um dever moral de os respeitar e de lhes conferir um tratamento condigno.

 

Olhando, tanto quanto seja a vossa informação, para o processo jurídico do Zico e o caso dele na barra da justiça, pode-se concluir que este é um caso vulgar em Portugal?

Não é um caso vulgar, e infelizmente assume contornos, que são ainda desconhecidos do público em geral, pois está em curso o respectivo processo crime que visa apurar as circunstâncias e a responsabilidade pela vida da criança.
Estamos a falar de um episódio em que se perdeu uma vida humana, de uma criança, o que é efectivamente uma tragédia, o que muito lamentamos.
Não obstante desconhecer-se esses contornos, é-nos evidente que o Zico despertou uma compaixão social tremenda, veja-se a esse propósito que foram recolhidas numa petição contra o seu abate mais de 70 mil assinaturas, apelando para que o mesmo não seja abatido e que seja entregue a uma associação de protecção animal.
Este caso evidência desde logo algumas das fragilidades e lacunas que temos na lei, começando logo por inexistir uma figura legal que permita a representação do animal em juízo, do seu interesse em sobreviver, quando os seus detentores não prosseguem tal interesse, ou até, quando um qualquer animal que se encontre nesta mesma situação, possa ter sido instrumentalizado para a prática de um qualquer crime.
Para além disso, a lei previa também um procedimento para este tipo de ocorrência, que obriga inclusivamente a uma análise comportamental do animal, o que não sucedeu.
Com efeito, dispõe o n.º 1 do artigo 15.º do DL n.º 315/2009, de 29 de Outubro, que “O animal que cause ofensas graves à integridade física, devidamente comprovadas através de relatório médico, é eutanasiado através de método que não lhe cause dores e sofrimentos desnecessários, uma vez ponderadas as circunstâncias concretas, designadamente o carácter agressivo do animal”
Ora, antes da tomada de qualquer decisão relativamente ao abate deste cão ou de qualquer outro cão (ressalvado o disposto no n.º 5 do mesmo artigo), teriam necessariamente de ser verificados dois pressupostos, o apuramento das circunstâncias da morte da criança (que se encontram a ser apuradas em sede própria que é o processo crime) e o carácter agressivo do animal (o que só poderá ter lugar mediante a realização de exame comportamental, efectuado por médico veterinário devidamente credenciado para o efeito)
Apesar dos apelos sociais e do que foi já interposto na acção, o Zico continua a aguarda a decisão numa cela circular, o que não reveste as condições mais adequadas do ponto de vista do bem-estar físico e psíquico do animal.
Ouvimos frequentemente falar em direito penal em princípios como o do indubio pro réu, na inocência ser presumível até prova em contrário, no direito do contraditório. Estranhamente o legislador não acautelou que também os animais poderiam ser instrumentalizados, com a agravante de não se poderem defender ou falar por si.
Infelizmente o caso do Zico não é uma excepção, se pensarmos nos milhares de animais que são abatidos todos os anos nos canis municipais, quer sejam animais de raça potencialmente perigosa ou cães do mais “elevado” pedigree que um dia conheceram o conforto de um lar. A lamentável verdade é que continuamos comoda e egoisticamente a permitir que a solução seja sempre o abate. Daria trabalho pensar numa solução ética que respeite os animais e não é economicamente relevante, não dá lucro. Mas quanto vale uma vida? E quem somos nós para o definir?
Se não defendemos a pena de morte para mães que matam os filhos, pedófilos, assassinos em série, exigimos que se abata um animal cuja existência foi toda ela condicionada pela mão humana?
Será que não está na altura de pensarmos num novo paradigma social? Onde os animais têm de ter o seu próprio e devido lugar?

 

Existe legislação contra cães perigosos?

Na verdade a legislação existente acaba por actuar efectivamente contra estas raças e funcionar como um critério especista e de temor social, ao invés até de acautelar potenciais comportamentos e impor determinadas regras e responsabilidades para a detenção de qualquer animal.
É importante que o legislador tenha presente que estas animais são também eles vítimas de um flagelo terrível, pois são frequentemente instrumentalizados em lutas de cães, procriação forçada, utilizados como meio de agressão, negligenciados e submetido a maltratos em condições que atingem patamares de particular perversidade e crueldade, e que passam completamente impunes.

A lei pune criminalmente as lutas de cães, com pena de prisão até um ano ou com pena de multa (cfr. n.º q do artigo 30.º do DL n.º 315/2009, de 29 de Outubro). Contudo, a detenção destes animais tem lugar muitas vezes em meios associados à grande criminalidade e ao narcotráfico, o que dificulta em muito a capacidade de actuação, pelo que se verifica uma grande ineficácia na aplicação da lei e consequentemente na protecção destes animais.

Não faz sentido existir um elenco de raças “potencialmente perigosas”, conforme actualmente previsto na Portaria n.º 422/2004, de 24 de Abril, e que sujeita estes animais a critérios de detenção mais rigorosos do que as demais raças e animais, pois o princípio da responsabilidade inerente à detenção por um qualquer deve ser comum a todas as raças ou espécies.

 

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Existe legislação contra os maus tratos a animais?

Em Portugal temos em vigor dois instrumentos de protecção jurídica aos animais, que são eles a Lei de Proteção dos Animais – Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro (publicado no DR 1.ª Série – A, n.º 211, de 12 de Setembro de 1995) e a Convenção Europeia para Protecção dos Animais de Companhia, ratificada pelo Estado português em 18.02.1993 – Decreto n.º 13/93, de 13 de Abril, cujo DL n.º 276/2001, de 17 de Outubro alterado pelo DL n.º 315/2003, de 17 de Dezembro, pela Lei n.º 49/2007, de 31 de Agosto e pelo DL n.º 255/2009, de 24 de Setembro e pelo DL n.º 260/2012, de 12 de Dezembro, veio concretizar as normas tendentes à aplicação da Convenção.
Contudo, o maltrato não é punido de forma clara pela legislação actualmente em vigor e só o é como contra-ordenação e nem sequer como crime.
Veja-se a esse propósito o artigo 68.º (contraordenações) do DL n.º 276/2001, de 17 de Outubro, na sua actual redacção, que pune expressamente como contraordenação o abandono (cfr. alínea c) do n.º 2 do referido artigo) com coima cujo montante mínimo é de € 500,00 a um máximo de € 3.740,00; e que no entanto não pune especificamente o maltrato, mas sim algumas condutas que podem perigar para o bem-estar animal, como por exemplo, o abate em desrespeito das condições estabelecidas, a venda de animais feridos, a do dever de cuidado, a falta das condições de alojamento, o maneio e o treino de animais com brutalidade, nomeadamente com pontapés ou pancadas, entre outras punições
Em Portugal só é punido criminalmente as lutas de cães e o abate ilegal de animais (neste este último já numa perspectiva dos crimes anti-económicos e de saúde pública e não no âmbito de uma preocupação com o bem-estar animal).

 

Nas duas perguntas anteriores, a legislação existente é suficiente?

Não, a legislação existente no nosso ordenamento jurídico é manifestamente insuficiente para proteger não só os animais das raças ditas “potencialmente perigosas”, como os demais animais.
É importante que não se deixe por dizer que em Portugal todos os anos milhares de animais são vítimas de maltrato, seja pelos próprios detentores, por terceiros ou pior inda por quem deveria pelo menos dar-lhe sum fim condigno, mas que ao invés, permite que sejam abatidos em canis municipais que não têm quaisquer condições,
Todos os anos milhares de animais são abandonados e sujeitos à sua sorte, na grande maioria das vezes nas condições humanamente mais inimagináveis.
Milhares de animais são espancados, acorrentados, negligenciados, entre tantas outras atrocidades que poderíamos aqui referir.
Todos estes animais são vítimas de crimes sem castigo.
Pese embora a legislação confira já alguns (parcos) direitos aos animais, como por exemplo o direito a uma existência livre de sofrimento injustificado (conforme resulta do artigo 1.º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro – Lei de Protecção Animal, publicada no DR 1.ª Série – A, n.º 211, de 12 de Setembro de 1995,na verdade não existem mecanismos de prevenção, fiscalização e punição efectiva que sejam eficazes.
Acresce ainda que a legislação existente é bastante dispersa, e desadequada à realidade à natureza dos animais.
Por um lado temos uma Lei de Protecção Animal, mas que não dispõe de um quadro punitivo próprio, ainda que fosse no plano meramente contra-ordenacional.
Por outro, essa lei não reconhece um Estatuto Jurídico próprio dos Animais, que urge ser reconhecido e não afasta as normas do Código Civil (domínio das coisas), cuja aplicação deveria de ser apenas supletiva e no que não fosse contrário ao espírito destes.
De igual modo, a legislação não pune criminalmente o maltrato (com excepção das lutas de cães) e o abandono, nem prevê mecanismos de acção cautelar, por meio de uma actuação preventiva e já não punitiva.

 

O PAN tem em vista alguma forma de intervenção, abaixo-assinado ou outra, para promover uma maior disciplina legal e igualdade entre o animal e o homem?

Apesar do grande resultado obtido nas legislativas de 2011, o PAN não tem assento parlamentar na Assembleia da República pelo que não pode lançar mão dos mesmos mecanismos que a lei atribuí às demais forças políticas representadas no Parlamento, nomeadamente a de iniciativa legislativa por meio da proposta de projecto-lei.
No entanto, e como forma de colmatar essa limitação, o PAN tem promovido a recolha de assinaturas de petições contra a experimentação animal, lançou a campanha dos canis, rem reunido com os principais órgãos que tutelam não só a fiscalização do bem-estar animal, como os que deveriam pugnar pela sua promoção, e ainda tem efectuado inúmeras denuncias, que têm logrado obter, em alguns casos, efeitos positivos.
Um dos nossos grandes objectivos é efectivamente a alteração do estatuto jurídico dos animais, o PAN estabeleceu por isso um grupo de trabalho que tem desenvolvido este tema e dedicado ao estudo do direito animal.